3. Bahia de Todos os Santos,... e Capetas!



O “capeta” é uma instituição baiana. O guaraná prensado em barra, também. Porto Seguro, famosa pelas comidas baianas saborosas, artesanato, praias lindas, etc, parece ter inventado o “capeta”. As barracas de capeta, antes só na Passarela do Álcool, hoje estão em quase todo canto. Não espere encontrar “bebidas de qualidade” numa barraca de capeta! Quer estourar seu cartão de crédito com bebidas finas, ali realmente não é o lugar. Em meio aos uísques do Paraguai (país; porque lá tem um bairro com esse nome também), e bebidas “de nome”, mas batizadas, tem muita vodca vagabunda. O objetivo da receita do “capeta” é segurar o folião alegrinho na balada ou no Carnaval durante muitas horas sem ter sono, por causa do guaraná em pó. No fim das contas parece uma receita original, com jeito de invenção artesanal. Conheço muita gente que toma capeta e volta para dormir – o som maluco da balada da rua parece ribombar dentro da cabeça, e não é culpa do travesseiro. Para os que têm problema de pressão alta, coração, nervos,... afaste-se do “diabo”, Prefira água mineral e os sorvetes do Coelhinho pedalando a bicicleta.

As duas nos ligaram dizendo que haviam chegado, felizes por estarem instaladas na Pousada Pão Doce, no Caminho do Mucugê. Encenei um pouco de desgosto ao telefone porque elas haviam prometido ficar em casa, conosco, na Virgílio Damázio, frente ao rio. Não havia deck nenhum nessa época; apenas as cadeirinhas e mesa de plástico vermelho do barzinho de Dona Dora, ali perto da Casa da Lenha. Pensei que as meninas estariam distantes de nós, teriam que enfrentar uma fila enorme para atravessar na balsa e curtir a Passarela do Álcool (que a bancada jesuína da Câmara tentou mudar o nome para Passarela de Jesus, Passarela do Brasil, Passarela do Descobrimento, essas coisas).

Lá pelas oito da noite, pouco antes de atravessarmos para vê-las, liga Cristina da pousada, apavorada, dizendo que Alice, a amiga dela, havia pulado a janela e desapareceu no jardim, sozinha, como se estivesse recusando sua companhia, nem bem arribaram no Arraial.

- “Chora não, minha fia,...é assim mesmo! Aí é o Arraial!”, eu a consolei.

 Jonpol e eu levamos pouco mais de uma hora para atravessar na balsa e tomar a Kombi para o Arraial. Descemos na pracinha da igreja de Nossa Senhora da Ajuda, cruzamos a Bróduei lotada, fumacinhas de incensos de todos os aromas imagináveis, tecidos indianos e balineses pendurados, parecia um Nepal à beira-mar. A Bróduei era aquela pluralidade em cada estabelecimento nos dois lados da rua de pedestres, um colado no outro, e com cadeiras e mesas na calçada. Rock punk num boteco, reggae no outro, cavaquinho e violão mais à frente, blues ao vivo e até cantos e sininhos de Hare Krishna. No fim da Bróduei viramos à esquerda, nem olhamos a praça hippie à direita, como de costume. Paramos na barraca de capeta do Ivan, um bróder nosso, encostada no muro baixo do cemitério, bem na rua principal, onde as barracas de capeta super iluminadas ostentavam frutas de todo tipo e vodka vagabunda. Pedimos um copázio de meio litro cada um: vodka boa do Ivan, leite condensado, guaraná em pó, polpa de fruta e muito gelo. Sempre tinha um chorinho do que sobrava no liquidificador e uvas ou morangos a mais. O Ivan era da hora!

Continuamos, passamos a padaria do israelense, casado com uma baiana, cardápio enorme na porta escrito com giz em hebraico e português. Curvamos perto do Manguti, tomando a rua do Mucugê. Gente a rodo por aquela rua. Lá perto do Beco das Cores entramos no jardim da pousada e vislumbramos Cristina ao lado de umas luminárias multicoloridas, com motivos africanos. Estava terminando de se maquiar. Beijos, abraços, ainda ostentava aquele branco palmito de quem enfrenta escritório em cidade grande. Afinal havia chegado aquela tarde e ainda não havia pisado na praia.

 Saímos para o buxixo da rua. Momentaneamente os queixumes de sempre deram lugar a um tipo de excitação, não se importando mais com o destino da amiga que pulara a janela e saíra sozinha por aí. E dizendo “Ah, deixa a garota se divertir! Tô nem aí!”, encostou no balcão do Morocha, um point bem maneiro de um argentino, logo em frente, pediu uma Margarita enooorme, acendeu um cigarro Gauloise, exalou longamente a fumaça através dos lábios maquiados em tom quase ameixa, realçados pelo bigodinho de sal da taçona de Margarita. Com um sorriso largo alinhou os ombros para uma posição relaxante e soltou essa:

- “Então, gente, que bom ver vocês! Quanto tempo! Como está Porto? Há tempos não ponho os pés por lá!”

Imaginei que a Margarita já estivesse fazendo efeito. Como assim? O aeroporto fica na Cidade Alta, perto da Casa Portuguesa,... essa criatura não passou por lá?! Mesmo que tivesse descido pela ladeira que dá no Campinho, já havia estado na cidade... Mas logo entendi o efeito Arraial na cabeça de algumas pessoas. Nem bem chegam, respiram aquele incenso todo, muita luz multicolorida, sonzeira de todo tipo, aquela mistura de Índia, Nepal e Bali com Bahia, gente bonita, uma biritinha forte, um Gauloise, pronto: zippy-dee-doo! Cidadã do Arraial, um lugar para onde o mundo “parece” convergir. Não havia mesa livre. De repente, Cris reclina sobre o balcão, meio que flertando com o argentino, e com aquele sorriso cocota de Belle Époque, solicita:

- “Outra, por favor!”. E esse “por favor” já saiu enviesado, meio portenho. A essa altura nossos capetas haviam se acabado e resolvemos acompanhar nas Margaritas. Cristina acendeu outro Gauloise, entrou num parêntese de melancolia passageira e nos contou em meio ao barulho dos sons à volta, o porquê estava ali. Sua vida sentimental estava uma bosta, não trepava fazia tempo, a vida tinha ficado muito cara, alguns vizinhos novos e “sem berço” em seu prédio perto da praia no Espírito Santo, o namorado da Marinha que não se correspondia mais, a filha única fazendo intercâmbio na Noruega,... enfim, a vida parecia uma merda...

- “Uaaai! Nocinhora!... o que é aquilo, Modeuz?!”

Quase se engasgando com a Margarita, Cristina vislumbra a amiga no meio do povo lá fora. Alice era uma mulher de meia idade, com o corpo de quem não ia à Academia fazia já um tempo. Trajava uma bermudinha curta de linho beige que parecia ter saído da bunda da vaca, bem amarrotada. Um sutiã de biquíni multicolorido, mal coberto por um camisão azul claro, aberto, mangas arregaçadas. Calçava uma sandália rasteirinha de artesanato local de aparência desconfortável. O que havia sido maquiagem já estava começando a escorrer. De longe o rosto manchado de rímel e batom fazia Alice parecer uma personagem amiga de Zé do Caixão, pronta para entrar em cena. Olhos semicerrados, cabelos desgrenhados, um copázio de capeta na mão e uma cigarrilha cubana, longa, na outra. Vinha marchando em passinhos lentos como se estivesse num bloco de carnaval, em meio ao povo e à sonzeira. Um traste.

-“Não estamos aqui...fiquem na minha frente... ela não conhece vocês! Mil-dyuz, que vergonha, logo agora que estou flertando com aquele argentino!”

- “Calma, Cris; não adianta se apavorar”.

- “Yes,... take it easy, I know!”, ela complementou e o argentino percebeu-a falando inglês, exatamente como ela tinha imaginado. Ele se aproximou um pouco mais dela e ofereceu-lhe um caquinho de barro pintado à mão, com amendoins torrados, oferta da casa. E, sorrindo provocante, empurrou essa:

- “Las Malvinas son argentinas”.

- “Quê?”

- “Las Malvinas, sabes, las Falkland”.

- “Y que carajo eu tenho a ver com isso? Cai na real, cara!”, devolveu Cris, soltando uma baforada curta do cigarro que acabara de acender. Eu me afastei momentaneamente para cumprimentar um bróder lá fora. O barulho aumentou depois da entrada do coroa do tambor, que percorre as ruas de Porto e Arraial atrás de gorjetas dos turistas após uns repiques mais personalizados. Ele passou perto de Cristina e Jonpol, ela se animou, o coroa também, Cris começou ensaiar uns passinhos, o véi achou que estava agradando, resolveu se aparcar por ali. De repente um grito: Cris se assustou quando Alice apareceu por trás e sacudiu os ombros dela.

- “Mulher, você tá doida? Que susto! Onde você foi depois que pulou a janela?”

E antes que aquele diálogo surreal se prolongasse ali no balcão, o argentino e o véio do tambor tentaram “apartar” as duas. A essa altura Cristina parecia forçar os cílios grandes “más arriba” para olhar melhor o ambiente. A amiga de Zé do Caixão começou a choramingar e mal conseguia formar uma frase inteligível.

- “Não faça isso comigo, ...amiga malvada... viemos espairecer e você parece estar com vergonha de sair comigo...”, choramingou. E continuou: “Não quero brigar com você”.

- “Me solta, bofe”, pediu ao argentino. “Solta, ela véi. Ninguém aqui tá brigando!”, declarou Cris ao coroa do tambor.

Jonpol deu ideia de irmos dançar um pouco no Girassol, mais adiante. Quando saímos na rua, antes de entrarmos no Girassol, Cris tratou das apresentações:

- “Alice, esse é o Jonpol e esse é o Bertfel, meus amigos que moram aqui”.

- “Ah, sim; prazer, meninos. Desculpem essa papagaiada!”

-“Ih...que papagaiada? Parece que é doida!”, interrompeu Chris, irritada.

E de repente, o pouquinho de alegria aparente começou a derreter. Tive a ideia de ir com Alice à pousada, logo ali, e insisti para que ela lavasse o rosto, trocasse aquele sutiã de biquíni de mau gosto, pusesse uma camiseta confortável, uma sandália de praia, desse uma ajeitada no cabelo, mas não tentasse refazer todo o meike porque acho que ela não acertaria mexer com aquele rímel pavoroso.

- “Estou bonita?”, perguntou-me com uma rodada, assim que terminou de acertar o figurino.

-“Você está linda! Está parecendo outra pessoa... uma cidadã do Arraial!”, eu disse, tentando levantar-lhe o astral. Assim que saímos em direção ao Beco das Cores, ela pôs o braço em volta da minha cintura. Já estava mastigando algumas palavras e tropeçando aqui e ali. Paramos no Mocaccino para tomar um Café Latte que ela aceitou com resistência. Sentamos a um canto do balcão, som suave, e percebi que ela insistia em colocar para fora o motivo da viagem para o Arraial. Fora casada com um médico anestesista, não estava mais feliz, terminou o casamento, fazia terapia para depressão e veio ao Arraial para tentar “dar o troco” aos deslizes que descobriu do ex-marido. Até aí eu já conhecia a história que me fora resumida pela Chris. Eu estava curioso para saber o que ela tinha feito depois que desceu as escadas do avião e respirou aquele ar quente da Bahia, cheiro de mar misturado com o gás de escape do avião. Ela foi rápida no gatilho. Esteve mais cedo na feirinha hippie, conheceu um tipo simpático “que parecia já conhecer de outras vidas” (imagina...) e desceu com ele o Beco da Zefa, em direção à praia do Mucugê. Pronto, pensei. Ela testou de cara um point que, morando aqui, levei tempos para descobrir! Contou que não chegaram a descer até a praia, marcaram para depois, mas mesmo assim vieram tomando todas.

-“Ah, o Ivan? Você conhece ele? É meu amigo! Faz um capeta ótimo e ainda tenta acertar uma uva no copo da gente, o sacana!”. Já era amigo, nem bem acabou de conhecer... 



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