1. Nem toda preta é baiana, e nem toda baiana é preta

                 

 

                           


Tive um professor que gostava de provocar em suas aulas de Antropologia. Para ele, quando alguém se refere a uma baiana, pode estar se referindo a um quase símbolo nacional: uma mulher de pele escura, que lava, passa e cozinha bem, que inspira sensualidade, e que tem um pé em terreiro de orixás. Ao contrário, quando se refere a baiano associa logo um ser preguiçoso, que gosta de passar o tempo na rede, faz trabalho malfeito, deixa tudo para depois, joga capoeira, dança o reggae do Marley e adora um beise.

A visão primitiva de várias estruturas do pensar tem essa característica: resumir, rotular, generalizar, que aliás não condizem com o raciocínio humanista pós-moderno. Um amigo meu tem filhos louros nascidos na Bahia. Tive uma aluna baiana morena chocolate que odiava capoeira. Na faculdade a gente idolatrava uma professora de Filosofia, negra, linda e cheirosa, com cabelo de boneca, casada com um empresário holandês, e que mal sabia fritar um ovo.

E do Prof.Dr.Milton Santos, aí em cima, alguém lembra? Não, não é jogador de futebol! Formou-se em direito pela UFBA, fez doutorado em Geografia pela Universidade de Estrasburgo, França, trabalhou como professor universitário em diversos países: Peru, Venezuela, Estados Unidos (MIT, Stanford, Columbia), Canadá (Univ de Toronto), Inglaterra, França (Sorbonne, Bordeaux, Toulouse) e Tanzânia. Em 1977 retorna ao Brasil e continua ministrando aulas em universidades: UFRJ, Unicamp, passou no concurso para professor na USP, onde permaneceu até se aposentar. Depois de aposentado ainda continuou escrevendo e pesquisando. Preto, baiano do interior, deixou sua marca na intelectualidade mundial quando o assunto é Geociências. A cor da pele, o sotaque, determinam exatamente o quê?

Os conceitos que se grudam nas pessoas são construídos a partir de pouca informação, má informação ou nenhuma informação, e então a preguiça mental faz com que o cérebro se acomode e opte por manter aquelas construções anteriormente malfeitas – os preconceitos. Sem contar a acomodação em desfazê-los. Mário de Andrade, em seu livro “Macunaíma”, publicado em 1928, considerado um dos principais romances do Modernismo brasileiro, satiriza, talvez, através do negro, a nacionalidade brasileira em formação, onde o personagem principal do livro, é individualista, preguiçoso e faz o que deseja sem se preocupar com nada. É vaidoso, mente descaradamente e gosta de se entregar aos prazeres carnais. Maanape, irmão de Macunaíma, tinha fama de feiticeiro e representa o povo negro. A obra é uma colagem sobre a formação do Brasil, em que vários elementos nacionais se cruzam numa narrativa que conta a história de Macunaíma, “o herói sem nenhum caráter”.

As culturas de matriz africana inspiram medo e desconfiança, não só no Brasil. Afinal, é mais cômodo amar aquilo que se conhece. O que não se conhece inspira medo e suspeitas. Num país com 53,9% de população preta é estranho não se conhecer contos, fábulas e mitologias da África. As línguas africanas são aqui totalmente desconhecidas. Em geral, nossa sociedade prefere dizer o ridículo “bumbum”, tão infantil, do que pronunciar “bunda”. Mero preconceito com o povo que foi trazido à força para trabalhar de graça no Brasil-zil-zil? “Bunda” é de origem bantu, uma das famílias de línguas de Angola. Por que será que se preferem, em nossa sociedade, um portunhol arranhado ou um inglês imprestável?

Alguns escravos malês (haussás/iorubas/nagôs) islamizados eram alfabetizados em árabe, não eram analfabetos. A revolta dos Malês, aconteceu no último dia do Ramadã (Lailat al-Qadr), traduzida como Noite da Glória, que relembrava o dia em que o Corão foi revelado a Muhammad (Maomé).  Foi planejada em árabe, nas ruas de Salvador, conforme o historiador João José Reis. A perseguição sofrida pelos escravos, especialmente na Bahia, não foi apenas pela intolerância  por serem  pretos, mas também islâmicos ou por praticarem cultos às divindades africanas demonizadas pela população de matriz cristã e eurocêntrica que os explorava e torturava.

Não me canso de ler “Milton Santos e o Brasil”, da Ed. Fundação Perseu Abramo, onde um punhado de cientistas sociais expõem e debatem ensinamentos e visões do Prof.Milton, e cada vez aprendo mais:

- “A geografia brasileira seria outra se todos os brasileiros fossem verdadeiros cidadãos. O volume e a velocidade das migrações seriam menores. As pessoas valem pouco onde estão e saem correndo em busca do valor que não têm.”

- “Existem apenas duas classes sociais: a dos que não comem e a dos que não dormem com medo da revolução dos que não comem.”

- “A força da alienação vem dessa fragilidade dos indivíduos que apenas conseguem identificar o que os separa e não o que os une.”

- “Ser negro no Brasil é, com frequência, ser objeto de um olhar enviesado. A chamada boa sociedade parece considerar que há um lugar predeterminado, lá em baixo, para os negros.”

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